segunda-feira, 22 de março de 2010

Ritual

Ia iniciar seu ritual. Prazeroso dever, o de tocar para si mesma. Olhou seu banquinho, era o mesmo de antes, mas estava diferente. Estava diferente, deveras. Apresentava outra cor? Sim, apresentava. Talvez só estivesse desbotado. Sobre seu instrumento estava o livro de partituras. Abriu na página 130. Sentiu em si a voluptuosidade daquele livro, daquelas notas, daquele momento, daquela canção.

Era ela que estava refletida alí, naquele mesmo piano lustrado. Usou a chave. Começaria a tocar.
E saiu o som.


Ela tocava o piano

Ela tocava o piano. Seus dedos já não pertenciam a si. Pertenciam a algo maior. Ela se emprestava toda à melodia e nela ficava submersa. Seus dedos tocavam as teclas como os dedos que tocam a medalha de ouro, amada medalha, com amor conquistada. Esses dedos percorriam tais teclas com pressa, com voraz sede do fim, ou sede da intensidade do momento. Se pudesse, beberia esse momento, gota a gota. Sim, ela queria completar a música, porém apreciava cada nota. Suas unhas, pintadas por um esmalte preto, descascado, eram uma visível demonstração de seu luto. A sala escura era, claramente, um reflexo de sua escuridão interior. Sozinha, nessa sala, ela se bastava. A música se tornou seu complemento, sua bebida, seu prazer, seu sentido. Sua lugubridade se transforma em ação, seus gestos se mesclam à poesia.
E saia o som.

Um som e uma ausência

Um som saia do instrumento enchendo o local do ritmo escolhido. Ela não poderia comandar todos os aspectos de sua vida, mas, o som que vinha de seus toques nas teclas, podia. Não tinha muitas escolhas a fazer, mas podia escolher o próximo compositor. Ela condensava seus sentimentos a algo que só ela sabia o quanto a agradava. Drenada de profundas emoções, tocou. Tocou, tocou, tocou. Tocou, como há muito tempo não tocava. Amava relembrar todos as datas em que tocara determinada canção. Lembrava-se do passado. De seu passado... Uma sensação saudosa cobria-lhe o corpo. Esgotaram-se todas as músicas de seu repertório. Usou a chave. Levantou-se do banquinho em que estivera e se dirigiu ao quarto.
O silêncio voltou ao lar.

sábado, 6 de março de 2010

O Sol e a Lua

Deixa-me, Lua!
Disse o Sol, quase a chorar
A Terra precisa de mim
Deixa-me iluminar!

Oh, astro Sol,
Começa a Lua a falar,
Os seres precisam da noite
Precisam do descansar

Querida Lua,
Podes então ficar
Permito que apareças
Mas amanhã vou voltar.

André- Junho de 2005

Estava

Estava em estado de contemplação. Do quê? Não sabia. Ouvia Carmen Linares e também escutava o barulho das águas da chuva que caiam no telhado furado de sua casa. Águas invadiam sua sala de estar, mas, em seu quarto, apenas a beleza da melodia da natureza, que se misturava, em impacto, às construções imperfeitas dos homens.


Tal qual telhado velho, seu peito também estava furado. Ela tinha nele uma necessidade. Do quê? Não sabia. Apenas sentia aquele buraco como uma mãe sente um filho que segura sua mão, pela primeira vez. Mas filho, em uma primeira vez, não agarra uma mão em sua totalidade. Agarra uma porção de dedo, que é tudo o que consegue, não podendo seu gesto ser desconsiderado e seus anseios serem dignos de desprezo... Nessa primeira vez, o buraco de vazio no peito corroeu apenas uma parte de sua dona. A outra parte ainda estava intacta, não tão intacta pela possibilidade do crescimento do que não é. Porque, para ela, um buraco não podia ser, apenas podia não ser: não ser um recheio, não ser um preenchimento, não ser algo completo. Assim como, um buraco no chão, precisa de terra para deixar de sê-lo, seu peito carecia da presença de algo. E ela se via esburacada e mergulhava pelo colchão como aquele mesmo bebê mergulharia na barriga daquela mãe se esta não fosse tão apertada, impossibilitando o alcance de suas pretensões. E, neste instante, ela, moça em buracos, sabia que o mundo era uma barriga apertada para sua imensidão. Se pudesse entraria em seus buracos apenas para contemplar o que não é, e poderia ter sido.



A chuva aumentava, e nesse engrossamento de gotas, uma tempestade se formou. O claro de raios passava pela sua janela de vidro e invadia o interior de seu quarto que já estava sendo igualmente invadido pelas águas de goteiras que ali se formaram. Seu rádio já não tocava nada. Possivelmente havia queimado antes que se pudesse ouvir o último trovão. Ela ainda se contorcia, buscando algo. O que buscava? Não sabia, apenas buscava. E mergulhava nessa sensação de que o inalcançável está a um passo de esbarrar em nossas mãos para que possamos, tal qual o bebê, pegá-lo, como se fosse o dedo da mão amiga, da mãe amiga, e prendê-lo entre os dedos como se fosse nosso presente mais valioso que não pode escapar... Ela se viu com os braços estendidos, buscando aquilo que não sabia que buscava.



Queria sentir mais. Sentir o quê? Não sabia. Apenas queria sentir. E se permitia. Ela já era grande demais para esse mundo. A chuva parecia saber disso. Os raios pareciam aumentar.


...

Tudo o que se sabe é que no outro dia, ou no dia sucessor deste outro, os jornais anunciavam que a chuva deixara uma moça morta em uma casa inundada. Sua roupa estava encharcada e rasgada. Por que rasgada? Não se sabe. Apenas estava. Suas mãos prendiam algo junto ao peito. Quê? Não se sabe. Apenas prendiam. Prendiam esse algo com todas as forças de seus dedos contraídos, que ninguém pôde esticar...

4 horas

Tinha um copo com água ao lado de sua escrivaninha, uma angústia em seu peito febril, ardendo e corroendo sua interioridade. Um suor escorrendo de sua testa, misturando-se às lágrimas que jorravam de seus olhos, abruptamente, deixando a visão, já prejudicada pela baixa claridade da lâmpada de seu abajur, ainda mais turva.


Sua caneta já estava quase sem tinta. Observava o quanto de escritos havia dispensado em detrimento à coisas que o preocupavam. Seu saldo no banco já quase nulo... Seus gastos com remédios não paravam de aumentar.



A preocupação o impedia de dormir adequadamente. Geralmente, pesadelos antipáticos e nada corteses, tal como pesadelos são, o visitavam sem serem convidados, sem trazerem nada de bom consigo. O sono, antes refúgio para as dores do mundo, se tornara outra cruz a sustentar.


Dessa vez, entretanto, seu sonho não havia sido interrompido por gritos ou marcas de sangue jorrando pelo chão: havia sido abordado por sussurros que ouviu e que lhe trouxeram inspiração. Como? Não soube explicar... Só sentia dentro de si que aquela seria a história de seus dias, tão passíveis de improdutividade e sensações negativas que não conseguia atingir o controle.


Com um pedaço de papel que utilizaria para calcular as despesas de contas a serem pagas, compulsivamente, se pôs a escrever seu roteiro. Não era escritor, mas naquele instante se fez. Seu corpo precisava da cura de sua doença. Sua alma não precisava de mais nada...


O relógio marcava quatro horas da madrugada. O êxtase do momento o deixara anestesiado, de modo que o copo com água manteve-se cheio no decorrer de dezenas de minutos de absorção. De seu físico, nessa hora, se esqueceu. Sua necessidade era outra: ele tinha sede de arte, e não podia esperar... E nada mais podia...