sábado, 6 de março de 2010

Estava

Estava em estado de contemplação. Do quê? Não sabia. Ouvia Carmen Linares e também escutava o barulho das águas da chuva que caiam no telhado furado de sua casa. Águas invadiam sua sala de estar, mas, em seu quarto, apenas a beleza da melodia da natureza, que se misturava, em impacto, às construções imperfeitas dos homens.


Tal qual telhado velho, seu peito também estava furado. Ela tinha nele uma necessidade. Do quê? Não sabia. Apenas sentia aquele buraco como uma mãe sente um filho que segura sua mão, pela primeira vez. Mas filho, em uma primeira vez, não agarra uma mão em sua totalidade. Agarra uma porção de dedo, que é tudo o que consegue, não podendo seu gesto ser desconsiderado e seus anseios serem dignos de desprezo... Nessa primeira vez, o buraco de vazio no peito corroeu apenas uma parte de sua dona. A outra parte ainda estava intacta, não tão intacta pela possibilidade do crescimento do que não é. Porque, para ela, um buraco não podia ser, apenas podia não ser: não ser um recheio, não ser um preenchimento, não ser algo completo. Assim como, um buraco no chão, precisa de terra para deixar de sê-lo, seu peito carecia da presença de algo. E ela se via esburacada e mergulhava pelo colchão como aquele mesmo bebê mergulharia na barriga daquela mãe se esta não fosse tão apertada, impossibilitando o alcance de suas pretensões. E, neste instante, ela, moça em buracos, sabia que o mundo era uma barriga apertada para sua imensidão. Se pudesse entraria em seus buracos apenas para contemplar o que não é, e poderia ter sido.



A chuva aumentava, e nesse engrossamento de gotas, uma tempestade se formou. O claro de raios passava pela sua janela de vidro e invadia o interior de seu quarto que já estava sendo igualmente invadido pelas águas de goteiras que ali se formaram. Seu rádio já não tocava nada. Possivelmente havia queimado antes que se pudesse ouvir o último trovão. Ela ainda se contorcia, buscando algo. O que buscava? Não sabia, apenas buscava. E mergulhava nessa sensação de que o inalcançável está a um passo de esbarrar em nossas mãos para que possamos, tal qual o bebê, pegá-lo, como se fosse o dedo da mão amiga, da mãe amiga, e prendê-lo entre os dedos como se fosse nosso presente mais valioso que não pode escapar... Ela se viu com os braços estendidos, buscando aquilo que não sabia que buscava.



Queria sentir mais. Sentir o quê? Não sabia. Apenas queria sentir. E se permitia. Ela já era grande demais para esse mundo. A chuva parecia saber disso. Os raios pareciam aumentar.


...

Tudo o que se sabe é que no outro dia, ou no dia sucessor deste outro, os jornais anunciavam que a chuva deixara uma moça morta em uma casa inundada. Sua roupa estava encharcada e rasgada. Por que rasgada? Não se sabe. Apenas estava. Suas mãos prendiam algo junto ao peito. Quê? Não se sabe. Apenas prendiam. Prendiam esse algo com todas as forças de seus dedos contraídos, que ninguém pôde esticar...

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